segunda-feira, 27 de julho de 2009

Noite de chuva.


Enquanto a chuva desabava sobre a cidade, você chegou com os cabelos molhados, os olhos de arrebentação, as mão frias, a língua em brasa;
Por um breve momento tive medo, medo da chuva, de que ela enfim terminasse, mas você não teve medo, sempre foi o mais forte dos dois;
Veio em busca de caça, de um pedaço de carne, rasgou-me o peito, a pele de um jeito e beijou-me de uma forma que embriagou-me até a alma e, enquanto o mundo lá fora desabava, as horas congelavam de susto no velho despertador que derretia ao lado, sob um criado emudecido de pudor;
E num vacilo você arrancou minha roupa, despedaçou minha língua, expôs minhas vísceras sob a cama e como um soco no ouvido, sussurrou-me um nome que não era o meu.

Primo Ferreira

quarta-feira, 22 de julho de 2009

outono


Sorriso amarelo de canto de boca, mau se segurando pra não cair da cara, se estatalar no chão feito fruta podre, folha no outono d’alma, pousar no espelho d'água e tudo ganhando um tom terroso e cobre, a terra, antes nua, se encobre de folhas e o vento frio e insolente vai despindo as copas das árvores, folha a folha expode seus magros galhos retorcidos.

Primo Ferreira

Engraçado.


Engraçado! Um passarinho me acordou muito cedo, entrou em meu quarto e me contou cantando ao ouvido todos os segredos dela, então, não achei mais graça nenhuma.

Primo Ferreira

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Pra que requentar a janta se a temporada de caça está reaberta?

Pus a chaleira no fogo e um disco de Dalva de Oliveira pra tocar, enquanto preparava-lhe o jantar, vestida de dona de casa, peguei o alho e amassei seus bagos, cortei as cebolas e chorei , cantando alto, enquanto o disco girava na vitrola eu rodopiava num chinelo velho de borracha;

Vou fazer um peixe de forno pro meu homem, com a dedicação de quem não sabe fazer nada melhor na vida;

A chaleira apitou, o lado do disco terminou, mudei o lado, coei um café forte e amargo, do jeito que ele prefere, sempre fui mais das coisas doces e suaves;

Pus na mesa os pratos que ganhei de mamãe, a travessa com o pescado no forno e, antes de tomar banho, coloco outro disco pra rodar, Ângela Maria, agora é ela quem vai cantar enquanto eu vou pro chuveiro, um banho demorado e caprichado, cabelos, axilas, coxas, seios, vagina, com uma atenção que geralmente não dedico pra mim, me preparo para ele;

Coloco o vestido de brocado que ele me deu ano passado, meu melhor sapato, quase me afogo com o seu perfume preferido, me pinto, de vermelho a boca e nas maçãs do rosto, nos olhos, risquei-os de preto, coloquei os cabelos pro alto e prendi-os só para ele ter o prazer solta-los;

O lado do disco acabou, viro-o, já está na hora dele chegar, o peixe sai do forno pra mesa, ajeito meus peitos, ponho-os quase pra fora do decote pra que eles vejam meu homem chegar, corro ao espelho, sempre fica uma mancha de batom do dente, agora sim, tudo perfeito, sento-me à mesa a esperá-lo, eu, seu o prato principal nesse banquete;

Oito, oito e meia, nove, neve e vinte, nove e meia, nove e quarenta, dez, dez e um, dez e dois, dez e três....

O sol bate na porta da retina, percebo que o disco de Ângela ainda chiava na vitrola, na mesa o jantar jazia intocado e frio e eu, posta à mesa congelada, a boca desbotado, maçãs murchas despencando do rosto, os olhos vermelhos de desgosto e os cabelos pesando nos ombros;

O tempo já não passavam, cada segundo congelado no freezer, entre carnes e peixes congelados;

Respiro fundo, levanto, tiro o disco da vitrola, o vestido jogo fora, junto com o jantar, com travessa e tudo, o perfume e o sapato, só guardo os pratos pois foi mamãe quem deu;

Lavo do rosto a pintura, lavo também o corpo e a casa toda, vou pra rua e compro um novo vestido, com um grande decote na frente e nas costas, sapado salto agulha e um vidro novo de perfume tipo francês, ponho-o na nuca, no pulso, atrás dos joelhos e no colo dou três borrifada, pinto de novo a cara, abro portas e janelas, arrumo meus peitos para que eles possam espiar a rua, a abro um belo sorriso e espreito o momento de dar meu bote, pra que requentar a janta se ainda tenho pernas firmes e belos peitos? a temporada de caça está reaberta!

Primo Ferreira

quinta-feira, 16 de julho de 2009

PELE

Memória, cheiro, gosto, trajetória, solidão, aconchego, tato, tapas, caricias. 
Gosto de ver de perto teus poros fechando ao contato da língua, ah, o arrepio, um respiro ofegante que parece sair da tez, não da boca; traduzir, da cútis, o idioma, sentir o bico do peito querendo machucar, interruptor que tudo liga e esquenta, acende, ascende e lateja; observo-te como um anatomista, dissecando cada pequena parte, gosto dos detalhes, as reentrâncias, as cicatrizes, as pintas, remontar tudo num quebra-cabeça, lendo-te num diário da epiderme, mas antes de decifrar, pego no sono aninhado em você.

Primo Ferreira

Minha cidade.


Esta cidade antiga, atracada no passado, num tempo hoje inexistente, a beira de um cais abandonado, um velho e enorme navio fantasma, gemendo com o esfolar do vento, enferrujando a carcaça despedaçada ao sabor do mar e o bafo corrosivo da maresia se espalhando e tomando contas das ruas, fazendo muito mal para esse lugar.

Esta cidade é muito velha e cheia de loucos, que dançam nos pátios, bebem um trago, fumam o goia dos outros e somem como por encanto, mas sempre voltam como uma lembrança das vergonhas, dos fantasmas pavorosos, dos sonhos irrealizados.

Esta cidade arcaica e decadente, escavando a terra lamacenta com as próprias unhas em busca de antigas glórias e histórias mau contadas, de brasões desbotados, sobrenomes desossados, velhas fotos de família em seus casarões transformados em casas de recepções e espaço de convivência.

Uma cidade sitiada pelas águas, dos rios cor de cobre, do mar que nos morde, nos faz em pedaços e reclama o seu lugar na varanda dos edifícios; pelas chuvas de julho que não mentem, nem escondem nada; é quando todas as águas se juntam, quando as ondas esbravejam contra as pedras, contra o barco que se choca no cais que, dentro do bucho dessa nau, os ratos se banqueteiam, fazendo a festa em seus porões e tudo em volta fede.

Primo Ferreira