Dia de chuva, o LP de Clara Nunes tocando na velha vitrola, disco mais velho do que eu sou agora, muitas lembranças acalentadas pela voz forte e quente de Clara, um tímido frio de julho gotejando ritmado lá fora, a luz difusa expondo a exata cor de cada coisa, lá fora os verdes, amarelos e vermelhos das folhas e flores, fachada das casas e velhas igrejas, aqui dentro, um cheiro de feijão novo que vai ocupando todos os espaços da casa, um cheiro quente do feijão, o chiado da panela de pressão e a voz quente da Clara guerreira a cantar estórias de pretas velhas, sorriso largo de avó a se divertir com criança correndo atrás do cachorro pelo terreiro, de pé no chão e boca manchada de manga espada, colhida no pé, é o que a voz quente de Clara me conta nessa manhã fria de julho, estórias muito mais velhas do que eu serei um dia, quase tão velhas quanto a chuva que lá fora bate palmas ritmadas a acompanhar os sambas de Clara Nunes a rodar na vitrola.
Primo Ferreira