quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Danou-se

A boca pintada, de um vermelho gritante, fazendo barulho e incomodando os olhos, sons desencarnados, desesperados e urgentes, sem nem mesmo abrir a boca, muda, impassível e violenta, que de tão silenciosa grita, a boca rubra e chamativa chegou antes dela e permaneceu muito tempo depois que ela foi-se, tatuada na retina, e minha cabeça decepada, girando na órbita dela, danou-se. 

Primo Ferreira.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

AQUARELAS MEDÍOCRES

A noite, Ah! A noite, com sua boca aberta e um mar sedento se fazendo de garganta, faminto, eternamente faminto, uma grande boca cheia de línguas ondulantes que buscam, uma a uma, a praia, esparramar-se na areia, lamber-lhe os lábios desnudos e macios, arenosos. Ao longe, há lua. Olho de um ciclope mítico, pousada sobre a linha do horizonte. Ponto de fuga! Facho branco. Há luz na saída. Há um ponto negro boiando sob a luz da lua, eu, num ritmo pendular das vagas, é meu o corpo arremessado, largado em seu quase não peso, encharcado até os ossos. É tão lindo ver-me assim desnudo, feito feto mergulhado em líquido amniótico, projeção astral, mas sou velho, fora do tempo, bailarino, agora nu. Meu corpo que não passa de uma mancha qualquer no escuro, na montanha russa de ventos inclementes, astronauta erguido em fios de prata, ele dança, meu corpo, ele salta e rodopia na superfície de uma lua refletida no mar. Nem sei mais se rio ou se choro, se mar ou se gozo, ou se simplesmente acordo. Sei e sinto que o mar morde, que as ondas lambem, me devorando aos poucos. O que há lá em baixo? Onde fincar meus pés? Onde prender-me à vida? Em que cabeleira me agarrarei desesperadamente? Em que gravidade pesará meu corpo? Lembranças riscam rápido o céu profundo, e mais uma, e outra, e de repente tudo se ilumina em volta, tempestade luzidia, todo o céu despencando sobre esse mesmo mar que me engole, devora tudo, que tudo recebe e absorve. É só mais um corpo, eu sei. Não mais que uma vaga lembrança, um esquecimento profundo. Sinto peixes, pequenos peixes morderem meus dedos, até que uma besta abissal surja com sua bocarra, acabando de uma só vez com a brincadeira dos pequeninos, numa só mordida, e tudo é finda, um vermelho no azul profundo, que é quase negro, chamuscado de prata, o mar é um espelho e eu um rio vermelho manchando a imagem refletida da noite, das estrelas, há uma lua de sangue a me espiar a face fria. Eu tinha medo, muito medo do mar, agora não mais, não há mais espaço pra covardia, eu já bebi o mar inteiro, engoli-o, gole a gole, sou marinheiro, náufrago tranquilo, apenas um veleiro lançado ao sabor dos ventos. Vocês de lá da terra firme, se puderem, lembrarem-se de mim, façam uma prece silenciosa, ascendam uma vela que seja, que me alivie, que me guie, me ajude a encontrar meu caminho entre as tempestades noturnas, de monstruosas ondas de engolir navios inteiros numa só talagada. Rezem para que uma gaivota me resgate ao menos a alma, pra que ela não afunde e se perca nos abismos profundos, pois se meu corpo o mar reclama, que a minha alma lhe seja tomada e entregue à luz daquela lua gorda, nesta noite tão brilhante, que meu espectro se ilumine de prata, não se tinja de azul marinho o meu fantasma. Rezem vocês da praia, rezarei eu por vocês. Para que não tenham o mesmo destino que o meu. Ao menos os que não forem filhos de velhos pesqueiros, tingidos de sal e sol, secos e olhos marejados, gente forte, só pelo e osso, filhos de marinheiros, pois aí não tem outro destino melhor, não! Eu, por mim, não sou nem de um, nem do outro, sou louco e atrevido, que por um amor roubado num sábado de carnaval, enlouqueci. Encharquei-me de cachaça e fel, me despi da fantasia de palhaço e joguei-me do píer de San Martin, sem nem mesmo saber nadar, nem cachorrinho, nem borboleta, nem mesmo boiar de costas, mesmo assim lancei-me, quis nem saber. Antes gritei aos ventos, cupi e blasfemei, desafiei mesmo o oceano, chamei-o pra briga e deu no que deu. O mar adora os amantes traídos e insolentes, encorajados pela insanidade de álcool. Logo eu que nunca fui um grande Don Juan, muito menos um Muhammad Ali. Seria patético se não fosse trágico. Ao menos o oceano nos redime, nos lava de nossas lembranças, nos limpa das memórias alheias, afogam nossas vergonhas, nossas aquarelas medíocres.     

Primo Ferreira.