A
noite, Ah! A noite, com sua boca aberta e um mar sedento se fazendo de garganta,
faminto, eternamente faminto, uma grande boca cheia de línguas ondulantes que
buscam, uma a uma, a praia, esparramar-se na areia, lamber-lhe os lábios
desnudos e macios, arenosos. Ao longe, há lua. Olho de um ciclope mítico, pousada
sobre a linha do horizonte. Ponto de fuga! Facho branco. Há luz na saída. Há um ponto
negro boiando sob a luz da lua, eu, num ritmo pendular das vagas, é meu o corpo arremessado,
largado em seu quase não peso, encharcado até os ossos. É tão lindo ver-me assim desnudo, feito feto mergulhado em líquido amniótico, projeção astral, mas sou velho, fora do tempo,
bailarino, agora nu. Meu corpo que não passa de uma mancha qualquer no escuro, na montanha russa
de ventos inclementes, astronauta erguido em fios de prata, ele dança, meu corpo, ele salta
e rodopia na superfície de uma lua refletida no mar. Nem sei mais se rio ou se
choro, se mar ou se gozo, ou se simplesmente acordo. Sei e sinto que o mar morde, que as ondas lambem, me devorando
aos poucos. O que há lá em baixo? Onde fincar meus pés? Onde prender-me à vida?
Em que cabeleira me agarrarei desesperadamente? Em que gravidade pesará meu
corpo? Lembranças riscam rápido o céu profundo, e mais uma, e outra, e de repente
tudo se ilumina em volta, tempestade luzidia, todo o céu despencando sobre esse mesmo mar que me engole, devora tudo, que tudo recebe e absorve. É só mais um corpo, eu sei. Não
mais que uma vaga lembrança, um esquecimento profundo. Sinto peixes, pequenos
peixes morderem meus dedos, até que uma besta abissal surja com sua bocarra,
acabando de uma só vez com a brincadeira dos pequeninos, numa só mordida, e tudo
é finda, um vermelho no azul profundo, que é quase negro, chamuscado de prata, o mar é
um espelho e eu um rio vermelho manchando a imagem refletida da noite, das
estrelas, há uma lua de sangue a me espiar a face fria. Eu tinha medo, muito medo do mar, agora não mais, não há mais espaço pra covardia, eu já bebi o mar inteiro, engoli-o, gole a gole, sou marinheiro, náufrago tranquilo, apenas um veleiro lançado ao sabor dos ventos. Vocês de
lá da terra firme, se puderem, lembrarem-se de mim, façam uma prece silenciosa,
ascendam uma vela que seja, que me alivie, que me guie, me ajude a encontrar meu
caminho entre as tempestades noturnas, de monstruosas ondas de engolir navios
inteiros numa só talagada. Rezem para que uma gaivota me resgate ao menos a
alma, pra que ela não afunde e se perca nos abismos profundos, pois se meu
corpo o mar reclama, que a minha alma lhe seja tomada e entregue à luz daquela
lua gorda, nesta noite tão brilhante, que meu espectro se ilumine de prata, não
se tinja de azul marinho o meu fantasma. Rezem vocês da praia, rezarei eu por
vocês. Para que não tenham o mesmo destino que o meu. Ao menos os que não forem
filhos de velhos pesqueiros, tingidos de sal e sol, secos e olhos marejados, gente forte, só pelo e osso, filhos de marinheiros, pois aí não tem outro destino melhor, não! Eu, por
mim, não sou nem de um, nem do outro, sou louco e atrevido, que por um amor roubado num
sábado de carnaval, enlouqueci. Encharquei-me de cachaça e fel, me despi da
fantasia de palhaço e joguei-me do píer de San Martin, sem nem mesmo saber nadar, nem
cachorrinho, nem borboleta, nem mesmo boiar de costas, mesmo assim lancei-me, quis nem saber. Antes
gritei aos ventos, cupi e blasfemei, desafiei mesmo o oceano, chamei-o pra
briga e deu no que deu. O mar adora os amantes traídos e insolentes,
encorajados pela insanidade de álcool. Logo eu que nunca fui um grande Don
Juan, muito menos um Muhammad Ali. Seria patético se não fosse trágico. Ao menos
o oceano nos redime, nos lava de nossas lembranças, nos limpa das memórias alheias, afogam
nossas vergonhas, nossas aquarelas medíocres.
Primo Ferreira.